Escrito por Dr. Harley Dei Nicola
INTRODUÇÃO
O efeito Doppler é uma característica das ondas sonoras que se manifesta quando estas são emitidas ou refletidas por um objeto que está em movimento em relação a um observador. Na área de diagnóstico por imagem, utilizamos este efeito para estudar a direção e as características do fluxo sanguineo, bem como medir suas velocidades.
Na última década dezenas de autores têm estudado o uso deste método especificamente nas patologias tireoidianas, porém, o papel do Doppler no diagnóstico do câncer tireoidiano permanece como assunto controverso. Esses estudos são baseados na suspeita de que a proliferação celular anormal estaria relacionada ao aumento da vascularização, bem como na modificação dos seus padrões habituais (1,2,3).
Com o avanço na tecnologia dos aparelhos e com novos métodos ecográficos como o Doppler de amplitude e o ultra-som tridimensional, o estudo dopplerfluxométrico tornou-se um importante método complementar de diagnóstico por imagem na avaliação dos nódulos tireoidianos podendo fornecer informações detalhadas sobre o aspecto morfológico e sobre a disposição espacial dos vasos (análise qualitativa), além da análise espectral (análise quantitativa) e dos índices de impedância vascular (análise semi-quantitativa). Estes dados podem ser úteis no diagnóstico do câncer de tireóide como veremos a seguir.
ANÁLISE QUALITATIVA (PADRÃO DE VASCULARIZAÇÃO)
Em 1993, Lagalla et al (1) propuseram uma classificação dos nódulos tireoidianos baseada no padrão de vascularização ao estudo com Doppler colorido. Esta classificação ainda é muito conhecida por endocrinologistas e cirurgiões de cabeça e pescoço, embora esteja desatualizada. Com equipamentos mais modernos e mais sensíveis a detecção de fluxos com baixas velocidades, Chammas (4) em 2001 propôs uma modificação da classificação de Lagalla.
Diversos autores publicaram trabalhos posteriores com resultados similares aos trabalhos de Lagalla (1) e Chammas (4), sustentando a tese de que quanto maior for a vascularização central do nódulo, maior será a probabilidade de malignidade em se tratando de carcinomas diferenciados da tireóide. Estes carcinomas apresentam vascularizações descritas como de “padrão caótico”, ricas em fístulas, estenoses e microaneurismas (5-8). Deve-se ressaltar também que este aumento da vascularização na região central do nódulo parece não ocorrer nos carcinomas anaplásicos e nos medulares (9).
Em 2004, Lebkowska et al. (10) estudaram nódulos tireoidianos utilizando Doppler colorido e reações imunohistoquímicas. A avaliação com o Doppler de amplitude mostrou um aumento de fluxo no centro dos nódulos que apresentaram aumento da proliferação celular, o que estava intimamente relacionado à malignidade.
Mais recentemente foram descritas ainda outras classificações para o Doppler na patologia nodular tireoidiana (11,12,13), no entanto, independentemente da classificação utilizada, deve-se ter especial atenção na técnica adequada do exame, a qual é dependente da qualidade dos aparelhos, da experiência e habilidade do examinador e de ajustes técnicos do aparelho (freqüência de repetição de pulso ou PRF, filtro de parede, ganho de cor, ângulo de insonação, etc). Esses parâmetros devem ser ajustados para minimizar artefatos, evitando uma interpretação errônea dos resultados obtidos. O Doppler de amplitude ( “power” Doppler) deve ser sempre utilizado, pois este método possibilita a detecção de fluxos com baixas velocidades, aumentando a sensibilidade do método (14,15,16).
Todas estas variáveis constituem, talvez, a principal explicação para resultados discordantes entre alguns trabalhos supracitados.
A grande crítica ao método dopplerfluxométrico é exatamente a falta de padronização na realização dos exames, o que torna discutível sua reprodutibilidade. Além disso, há certa dificuldade em demonstrar a vascularização em nódulos muito pequenos, com tamanho inferior a 6 mm (5).
Mais recentemente, para se tentar driblar a falta de padronização e a subjetividade que envolve as classificações propostas para o Doppler tireoidiano, alguns autores estudaram a utilização de softwares específicos que determinam índices vasculares e índices de perfusão nos nódulos utilizando-se o Doppler de amplitude (17,18). Estes autores também acharam diferenças estatisticamente significantes entre estes índices nos nódulos malignos e benignos, reforçando a idéia de que os nódulos malignos (carcinomas diferenciados) apresentam maior grau de vascularização interna.
Shunts arteriovenosos e vasos calibrosos penetrantes detectados ao Doppler parecem ter também um alto valor preditivo para malignidade nos nódulos tireoidianos (19,20,21).
Embora exista controvérsia na literatura, o papel do Color Doppler no diagnóstico do câncer tireoidiano é reconhecido pela maioria dos autores. Prova disso é a recomendação de seu uso estimulada por importantes e recentes “guidelines” nacionais e internacionais elaborados por especialistas no assunto (22,23).
ANÁLISE SEMI-QUANTITATIVA
A análise das velocidades de fluxo nos vasos depende de um cálculo onde o ângulo de insonação (ângulo no qual o feixe de ultra-som intercepta o eixo do vaso em estudo) deve ser corrigido para que seu valor seja entre zero e sessenta graus. Como não é possível fazer a correção deste ângulo de maneira confiável em vasos muito pequenos e tortuosos no caso dos nódulos tireoidianos, a análise dos índices semi-quantitativos (índice de resistividade ou IR e índice de pulsatilidade ou IP) é mais fidedigna, pois não depende do ângulo. O IR foi definido por Pourcelot como (S-D)/S, onde S= pico de velocidade sistólica e D= velocidade diastólica final. O valor máximo do IR é igual a 1,0(24). Esta variável é bastante conhecida e muito utilizada para o estudo dos fluxos arteriais. Poucos estudos procuraram observar a relação entre a natureza dos nódulos tireoidianos e o IR e os estudos iniciais apresentaram resultados similares. Holden (3) encontrou média de IR de 0,76 nos carcinomas, 0,66 nos adenomas e 0,57 nos nódulos colóides. Da mesma maneira, os trabalhos subseqüentes encontraram valores altos de IR (acima de 0,70) nos nódulos malignos(2,4,7,12,25).
Tamsel e cols. também realizaram um estudo para determinar se o padrão de fluxo vascular ou a análise espectral, incluindo o índice de resistência e a velocidade sistólica máxima, podem ser utilizados para diferenciar um nódulo maligno de um benigno. Nesse trabalho, os nódulos malignos apresentaram um índice de resistência de 0,60 nos vasos intranodulares e 0,58 nos vasos perinodulares. Os valores não foram significativamente diferentes dos encontrados nos nódulos benignos, que apresentaram índice de resistência de 0,57 nos vasos intranodulares e 0,56 nos vasos perinodulares. O trabalho, diferentemente dos anteriores, concluiu que as características do Doppler, incluindo o padrão de fluxo vascular, índice de resistência e a velocidade sistólica máxima não são parâmetros úteis para diferenciar os nódulos malignos dos benignos (16).
A resistência vascular total pode ser definida como a soma da resistência vascular através das artérias, arteríolas, capilares e veias, nesta ordem. A maior parte desta resistência, aproximadamente 60%, está nas arteríolas (26). È conhecido que o crescimento tumoral depende do suprimento sanguíneo e da neoformação vascular. Conseqüentemente o estudo sobre a angiogênese tumoral é um campo promissor no diagnóstico, no prognóstico e no tratamento em oncologia. No caso dos nódulos tireoidianos a principal questão é: por que os valores de IR nos nódulos tireoidianos malignos são maiores do que nos benignos considerando-se que, devido à neoformação vascular, a maioria dos tumores malignos em outros locais do corpo humano apresentam baixos valores de IR. Uma das prováveis explicações seria a presença de inúmeras fístulas, estenoses e oclusões nos vasos neoformados dos carcinomas diferenciados da tireóide.Desta forma, a análise espectral mostraria alta impedância, com altas velocidades de picos sistólicos e baixas velocidades diastólicas finais. Como o cálculo do IR relaciona estes valores entre si, o seu valor também seria elevado.
Bude (27) estudou o grau de influência da resistência vascular e também da complacência vascular na determinação dos valores do IR. A hipótese defendida por este autor foi que a complacência vascular (definida como a mudança de volume no vaso com uma mudança de pressão) é um fator crítico de alteração do valor do IR. Quanto menor a complacência, menor seria o IR para um mesmo grau de resistência vascular. Tem-se demonstrado que o fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF) está envolvido na angiogêgenese dos tumores do sistema endócrino(28,29). Possivelmente, algum mecanismo envolvendo o VEGF possa também influenciar na complacência dos vasos neoformados.
Sabe-se também que alguns tumores da tireóide comumente apresentam aneuploidia, provavelmente por instabilidade cromossômica. Esta característica é associada a um grande potencial de malignidade (30). Estudos sobre correlação entre mutações genéticas e características dos vasos neoformados, como a complacência vascular, poderiam ser de interesse no campo da oncologia e da radiologia.
Igualmente como na análise do padrão vascular, os ajustes do aparelho são essenciais para uma correta interpretação do exame. A aquisição de boas ondas de velocidade de fluxo (ondas espectrais) não é tão simples e depende, além da habilidade do examinador, da colaboração do paciente, pois este precisa de uma breve pausa nos movimentos respiratórios e no movimento de deglutição para que não se crie artefatos na imagem. Todos estes motivos tornam o método pouco reprodutível sendo necessário um maior número de estudos a este respeito.
Vale lembrar que não existe um “valor mágico” de IR que possa distinguir nódulos benignos e malignos. Podemos observar sobreposição de valores nas diferentes patologias com tendência de valores elevados em nódulos malignos. Assim, para cada valor de IR existe uma sensibilidade e uma especificidade.
CONCLUSÕES
As características dopplerfluxométricas que aumentariam a probabilidade de malignidade em um nódulo tireoidiano são:
Predomínio de vascularização central
Detecção de shunts arteriovenosos no interior do nódulo
Presença de artéria calibrosa e penetrante (artéria nutridora)
Altos índices de resistividade e de pulsatilidade (alta resistência vascular).
Em 2004, os ultra-sonografistas da Sociedade Americana de Radiologia reuniram um grupo formado por radiologistas, endocrinologistas, citopatologistas e cirurgiões para discutir a conduta diante dos nódulos tireoidianos diagnosticados pela ultra-sonografia. Quanto ao uso do Doppler colorido no diagnóstico dos nódulos malignos, as opiniões não foram unânimes. O grupo de especialistas concluiu que, assim como outras características ultra-sonográficas de malignidade, o Doppler colorido não pode diagnosticar ou excluir malignidade com alto grau de confiança. O fluxo sanguíneo interno ou central somente indica uma maior probabilidade de malignidade da lesão nodular (31).
Compartilhamos da opinião de Camargo (32) na qual, em sua experiência, têm observado que os nódulos autônomos e adenomas foliculares freqüentemente apresentam vascularização central, enquanto vários nódulos que apresentaram citologia positiva para carcinoma papilífero apresentaram-se sem vascularização ou pouco vascularizados, principalmente aqueles que apresentam maior grau de fibrose. Portanto, pode-se considerar que o aumento de vascularização central e da resistência vascular são apenas mais duas características que, juntamente com algumas características ao ultra-som convencional como a marcada hipoecogenicidade, ausência de halo periférico, margens irregulares e presença de microcalcificações, tornam o nódulo mais suspeito para malignidade. Da mesma maneira, a ausência de vascularização central não constitui parâmetro suficientemente confiável para se excluir malignidade.
Referências:
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